Cinema Físico

Trata-se de um conceito que está diretamente relacionado aos textos de Rogério Sganzerla publicados no Suplemento Literário do jornal O Estado de S.Paulo nos anos 1960, mais precisamente de 1964 a 1967, período no qual ele lançava semanalmente artigos nessa publicação, alguns deles voltados a Godard, Orson Welles, Ruy Guerra, Glauber, Cacá Diegues, Person, entre tantos outros realizadores atuantes nos anos 1960 (cf. PAIVA, 2005; 2010). A rigor, a concepção de cinema físico pode encontrar referência em outros contextos, por exemplo, na França, no âmbito da Nouvelle Vague.  Jean Douchet, por exemplo, nos lembra que, ao afirmar que “o travelling é uma questão de moral” (apud DOUCHET, 1999, p 174), Godard estava em conexão com uma certa concepção de cinema físico então emergente na “nova onda”, que tomava o corpo e o seu deslocamento  como elementos fundamentais de uma encenação interessada, não na profundidade psicológica dos personagens,  mas em seus gestos, em sua aparência.  Como ele diz, o deslocamento também assumia um sentido de inconformidade, impossibilidade de ajuste à moral burguesa. E Sganzerla certamente estava atento a tudo isso, como podemos confirmar lendo os seus textos do Suplemento Literário ou assistindo aos seus filmes, já desde Documentário (curta de 1966 dirigido por ele e fotografado por Andrea Tonacci), no qual a deambulação perpassa toda a narrativa, ou mesmo Olho por olho (curta com direção de Tonacci e montagem de Sganzerla, também de 1966), em que prevalece a perambulação automotiva. A reiteração das deambulações e perambulações automotivas estarão também em seus primeiros longas, O bandido da luz vermelha (Sganzerla, 1968) e Bang bang (Tonacci, 1970). Mas, lendo os referidos textos do Suplemento Literário, será possível a conexão de aspectos muito mais abrangentes do cinema físico, envolvendo, por exemplo, O canto da saudade (Humberto Mauro, 1952), Os cafajestes (Ruy Guerra, 1962) e São Paulo S/A (Luís Sérgio Person, 1965), filmes nos quais a estrada assume uma dimensão fundamental em suas narrativas. São vários os artigos que reiteram a ideia, mas é principalmente em um texto intitulado “cineastas do corpo” que Sganzerla esclarece um ponto fundamental do cinema físico: os cineastas do corpo observam “a destruição dos homens pelos agentes externos, os meios criados pela nossa civilização (o avião; o automóvel; a metralhadora; o cinema, responsável pela morte dos personagens de Godard)” (SGANZERLA, 1965 c). Os personagens desse cinema, que poderá enaltecer a violência, em geral, são foras-da-lei, e tal dimensão assume distintas concepções se estiver em pauta seja a “estética da fome” do Cinema Novo, por exemplo, em Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964), seja a “estética do lixo” do Cinema Marginal, por exemplo, em Orgia ou o homem que deu cria (João Silvério Trevisan, 1970) ou Aopção ou as rosas da estrada (Ozualdo Candeias, 1980), seja ainda em outras concepções, como uma mais recente tal como Cinema, aspirinas e urubus (Marcelo Gomes, 2005), em que os “os meios criados por nossa civilização”, como diz Sganzerla, põem em xeque a desumanidade da guerra.

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