Esta linha de coerência discursiva se propõe com uma citação ao livro The Brazilian road movie: journeys of (self) discovery, organizado por Sara Brandellero (2013), no qual há capítulos de vários autores que discutem filmes de estrada brasileiros em um intervalo temporal que vem dos anos 1920 até praticamente os dias atuais. Um dos aspectos instigantes dessas reflexões presentes no livro diz respeito justamente a uma perspectiva historiográfica e teórica que, mesmo sem deixar de considerar as referências produzidas em outros contextos, sobretudo, nos Estados Unidos, onde a produção de pesquisa sobre o tema dos road movies é considerável, procura entender o filme de estrada a partir de um ponto de vista específico da produção brasileira, ainda que na chave de sua alteridade internacional (cf. PAIVA, 2014b). Assim é que podemos pensar em referências tão remotas quanto filmes de Silvino Santos, como No país das amazonas (1922) ou Terra encantada (1923), que embora não possam ser considerados filmes de estrada tout court, já expressam algo relacionado ao gênero, como as tensões entre mobilidade e modernidade, as quais assumem, em distintos momentos, sentidos diversos. Na produção dos anos 1950, por exemplo, filmes como Sai da frente (Abílio Pereira de Almeida, 1952), A estrada (Oswaldo Sampaio, 1955) e Pé na tábua (1957) expressam a transição da população brasileira do campo para a cidade, a instalação da indústria automobilística em São Paulo e as políticas desenvolvimentistas de Getúlio Vargas e JK, inclusive, os impactos causados pela inauguração de Brasília como nova capital do país. Por sua vez, o Cinema Novo (e aqui podemos nos lembrar da linha sertão-mar) surge como um parâmetro, inclusive, para realizadores que, tendo participado do movimento cinemanovista nos anos 1960, eventualmente fazem reconsiderações sobre o projeto ideológico que era então cogitado, caso de Cacá Diegues, por exemplo, com Quando o carnaval chegar (1972), Bye bye Brasil (1979) e Deus é brasileiro (2003). Há também os filmes que procuram mais concretamente rever o país em suas alteridades internacionais. Walter Salles é a propósito instigante: Terra estrangeira (em codireção com Daniela Thomas, 1995), por exemplo, põe em xeque, por um lado, a nação diante do desastre do governo Collor e, por outro, rediscute o Brasil em suas relações históricas com Portugal em uma perspectiva pós-colonial. Já Diários de motocicleta (Walter Salles, 2004), mesmo estando em princípio relacionado à história de Che Guevara e Alberto Granado, pode nos levar a pensar nas relações do Brasil com a América Latina e, em especial, com a América do Sul. Há, além disso, toda uma produção que se coloca com personificações contra um Estado opressor: Sai da frente (Abílio Pereira de Almeida, 1952), A estrada (Osvaldo Sampaio, 1955), Os fuzis (Ruy Guerra, 1963), Vidas secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963), Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964), Orgia ou o homem que deu cria (João Silvério Trevisan, 1970), Mar de rosas (Ana Carolina, 1977), Ação entre amigos (Beto Brant, 1998), Cinema, aspirinas e urubus (Marcelo Gomes, 2005), Pachamama (Eryk Rocha, 2008), entre outros. Nesse sentido, é sintomático que um dos mais emblemáticos filmes de estrada do Brasil seja justamente Iracema, uma transa amazônica (Jorge Bodanzky e Orlando Senna, 1974), que põe em xeque um mito romântico de fundação nacional.