Dialética do Trabalho e da Malandragem

Provavelmente pelo fato de On the road, o romance de Jack Kerouac (1997), lançado em 1957 em meio ao movimento beat, e o filme Easy rider (Sem destino, Dennis Hopper, 1969), emblema do movimento hippie,  terem se tornado como que epítomes do road movie,  este gênero foi gradualmente relacionado à ideia de contracultura ou, como afirma David Laderman (2002, p. 20), a uma “tensão entre rebelião e conformidade” (grifo do autor, tradução nossa). Entre os vários argumentos que apresenta para afirmar tal proposição, Laderman chama a atenção para o fato de que, no romance de Kerouac, o carro é uma figura que expressa uma crítica cultural, uma possibilidade de transformação pautada paradoxalmente pelo próprio carro enquanto um produto da indústria automobilística, que em princípio não se conjuga aos ideais da contracultura. No campo do cinema mais propriamente, como ele diz: “em muitos road movies, a rebelião modernista continuamente trabalha a si mesma através dessas inflexões de conformidade – inflexões derivadas da fórmula hollywoodiana clássica, da estética pós-moderna, de subtextos relacionados a gêneros [no sentido sexual], raça e à própria modernidade. Contudo, o direcionamento modernista inicial articula uma desconfiada desilusão com instituições cinematográficas, culturais e políticas dominantes” (Idem, p. 6, tradução nossa).  Mesmo considerando as ambiguidades dessa tensão apontada por Laderman, é característica em todo caso, no contexto dos EUA, a presença de protagonistas que são outsiders, recusando um acordo com a ordem vigente, haja vista produções como, além do já citado Easy rider, outros filmes como The wild one (O selvagem, Laslo Benedek, 1953), Bonnie and Clyde (Arthur Penn, 1967), Thelma and Louise (Ridley Scott, 1991), Natural born killers (Assassinos por natureza, Oliver Stone, 1994), só para lembrarmos alguns exemplos. No Brasil, entretanto, historicamente, como esclarece Roberto DaMatta (1997) em seu livro A casa e a rua, mais precisamente em um capítulo no qual entra em pauta uma análise do romance Dona flor e seus dois maridos (Jorge Amado, 1966), em vez da ética protestante que marca a cultura estadunidense em sua origem, nós somos herdeiros de uma tradição católica ibérica. E isso indica uma tendência a conciliar ou “relacionar” as diferenças: “O ponto é utilizar consistentemente a descoberta de que a sociedade brasileira é relacional. Um sistema onde o básico, o valor fundamental, é relacionar, juntar, confundir, conciliar [grifos do autor]. Ficar no meio, descobrir a mediação e estabelecer a gradação, incluir (jamais excluir). Sintetizar modelos e posições parece constituir um aspecto central da ideologia dominante brasileira. Digo mesmo que é o seu traço distintivo em oposição a nações protestantes, como os Estados Unidos”  (DaMATTA, 1997, p. 108).  E ele associa tal característica brasileira à perspectiva do dialogismo implicado na noção de “carnaval”, segundo Bakhtin (1981; 2008), e à “dialética da malandragem” tal como é proposta por Antonio Candido (1970) em seu ensaio sobre o romance Memórias de um sargento de milícias (Manuel Antônio de Almeida, 1864). Com tal parâmetro, é oportuno perceber como em vários filmes de estrada do Brasil há uma recorrência relacionada à busca da sobrevivência pelo trabalho, tendo-se em vista o percurso de personagens encontrados em narrativas diversas, tais como: A estrada (Osvaldo Sampaio, 1955), Pé na tábua (Victor Lima, 1957), Vidas secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963), Iracema, uma transa amazônica (Jorge Bodanzky e Orlando Senna, 1974), Bye bye Brasil (Carlos Diegues, 1979), A estrada da vida, Milionário e José Rico (Nelson Pereira dos Santos, 1980), Aopção ou as rosas da estrada (Ozualdo Candeias, 1980), Jorge, um brasileiro (Paulo Thiago, 1989), Deus é brasileiro (Cacá Digues, 2002), O caminho das nuvens (Vicente Amorim, 2003), Cinema, aspirinas e urubus (Marcelo Gomes, 2005), O céu de Suely (Karim Aïnouz, 2006), Dois filhos de Francisco (Breno Silveira, 2005), entre outros. Mas, justamente lembrando o ensaio de Antonio Candido, é interessante pensar como esta característica do trabalho traz, “em relação” (como diria DaMatta), a ideia da malandragem, como sintoma de contracultura. Isso porque a malandragem do protagonista do romance de Manuel Antônio de Almeida se caracteriza, segundo Candido, justamente por sua oscilação entre os polos da ordem e da desordem. Encontra-se aqui uma linha instigante para se pensar uma dimensão histórica do que poderia ser um aspecto da contracultura brasileira refletida não só na literatura, mas também no cinema, e mais precisamente em alguns filmes de estrada nos quais é possível o reconhecimento de características discutidas por Antonio Candido em sua concepção da dialética da malandragem, tais como dimensões picarescas e documentárias no âmbito da ficção.

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