Paisagens Afetivas

Estão relacionadas a espaços e deslocamentos que refletem os afetos de sujeitos. Os sentimentos dos personagens modulam a captação e a montagem das imagens e sons, com o ponto de vista da câmera tendendo a coincidir com o do protagonista ou mesmo com o dos coadjuvantes. Afinal, a estrada frequentemente é o ponto de vista do motorista e do acompanhante em movimento. Exemplos podem ser observados em diversos filmes, inclusive, alguns nos quais se sobressaem cenas, digamos, surrealistas, como os sonhos e a memória que conduzem o professor de Morangos silvestres (Ingmar Bergman, 1957); a sequência do ácido lisérgico que envolve os personagens de Easy rider (Dennis Hopper, 1969) em uma espécie de delírio coletivo; a visão subjetiva da morte em Gosto de cereja (Abbas Kiarostami, 1997), entre tantos outros. No Brasil, certamente um ponto de inflexão relevante desta linha é o romance Grande sertão: veredas (Guimarães Rosa, 1956), no qual a visão e os sentimentos do protagonista Riobaldo estabelecem uma geografia do sertão por seus afetos. Esta, aliás, é provavelmente uma referência para vários filmes que têm justamente tomado o sertão na visão dos seus personagens: vale lembrar a subjetividade de Fabiano impressa na narrativa de Vidas secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963); a visão de Manuel e Rosa em Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964); os efeitos de mágica em Bye bye Brasil (Cacá Diegues, 1979), inclusive, quando Salomé e Lord Cigano seguem no novo caminhão a caminho do Norte do país; o delírio de Dora em Central do Brasil (Walter Salles, 1998); os milagres de Deus em Deus é brasileiro (Cacá Diegues, 2002); os pontos de vista cruzados de Ranulpho e Johann em Cinema, aspirinas e urubus (Marcelo Gomes, 2005); a sequência do chá alucinógeno em Árido movie (Lírio Ferreira, 2006); a memória em super 8 de Suely, posta já nas primeiras sequências de O céu de Suely (Karim Aïnouz, 2006); o ponto de vista do geólogo José Renato que coincide inteiramente com a câmera, a ponto do personagem não ser visto em qualquer momento da narrativa, em Viajo porque preciso, volto porque te amo  (Karim Aïnouz, Marcelo Gomes, 2009). São tantos os exemplos relacionados ao sertão, que certamente podemos pensar nesta característica como sendo um traço distintivo da produção brasileira de filmes de estrada relacionada a paisagens afetivas. Entretanto, é possível pensar em outros filmes que, sem relação direta com o sertão, também indicam a possibilidade de inclusão nesta linha. Em Os cafajestes (Ruy Guerra, 1962), por exemplo, a câmera fotográfica de Vavá e Jandir por vezes coincide com o movimento do automóvel, como na sequência do travelling circular em torno de Leda nua. O longo plano da estrada ao final de O anjo nasceu (Júlio Bressane, 1967) nos remete a uma enunciação fílmica que assume em sua fatura os transtornos dos personagens Santamaria e Urtiga. O movimento antiteleológico do tempo e do espaço em Bang Bang (Andrea Tonacci, 1971) reflete uma crise de um personagem cuja identidade não é definida; a visão perturbada de Betinha soterrando Felicidade, sua mãe, em Mar de rosas (Ana Carolina, 1977) imprime na sequência uma dimensão de teatro do absurdo; o caráter estranho de Alberto predomina na enunciação do filme Hotel atlântico (Suzana Amaral, 2009). Vendo todos esses e muitos outros filmes em que as paisagens afetivas conduzem suas narrativas, é possível cogitarmos a referência de Gilles Deleuze (2006; 2009), em seus livros Imagem-movimento e Imagem-tempo, lançados respectivamente em 1983 e 1985, nos quais ele apresenta suas noções sobre imagem-percepção, imagem-afecção, imagem-pulsão, imagem-ação e imagem-cristal. Na impossibilidade de detalhar todos esses e ainda tantos outros conceitos tratados por Deleuze nesses livros, convém cogitar que ele parece construir sua proposição sobre os gêneros cinematográficos levando em conta fundamentalmente o “discurso indireto livre” e a “subjetiva indireta livre”, tratada, tanto em Imagem-movimento como em Imagem-tempo, a partir da proposição de Pasolini de um cinema de poesia, que põe em relação o autor, sua personagem e o mundo.

Os comentários estão encerrados.