A noção de “linhas de coerência” é proveniente do livro Historiografia clássica do cinema brasileiro: metodologia e pedagogia, de Jean-Claude Bernardet (1995). Sua ideia, como ele mesmo explica, foi proposta pela primeira vez, na verdade, por Cacá Diegues, criticando a visão de história do cinema brasileiro pautada por ciclos verticalizados (a Bela Época dos primeiros tempos, os ciclos regionais dos anos 1920, as experiências industriais das décadas de 1930 a 1950, o Cinema Novo e o Cinema Marginal, etc.), sugerindo, em vez disso, um trabalho sobre filões que pudessem ser desenvolvidos horizontalmente a partir de recortes diversos. Bernardet então ampliou tal ideia ao problematizá-la em relação a uma série de questões implicadas na metodologia dos estudos históricos sobre cinema no Brasil, propondo conexões sincrônicas a serem estabelecidas a partir de “linhas de coerência”, ou seja, de “recortes e contextos” construídos em função de objetos de estudo diversos resultantes da observação dos pesquisadores da história, a partir de seus múltiplos interesses. Aqui, no caso, o interesse diz respeito aos filmes de estrada do Brasil (cf. PAIVA, 2014a). E as linhas de coerência passaram também a ser cogitáveis como “práticas discursivas”, de acordo com uma proposição de Jason Mittel (2001), mais precisamente em seu artigo “A cultural approach to television genre”, que entende os gêneros como discursos construídos em uma perspectiva cultural capaz de envolver os esquemas de produção, texto e recepção. A pesquisa partiu então de um período (1960-1980) que, por um lado, é marcado pela superação dos estúdios e pela busca de locações e, por outro, pelo processo de modernização conservadora do país, envolvido em uma ditadura militar com seus projetos monumentais, inclusive, a construção de rodovias como a Transamazônica, que aparece tão fortemente marcada em emblemas dos filmes de estrada do Brasil, como Iracema, uma transa amazônica (Jorge Bodanzky, Orlando Senna, 1974) e Bye bye Brasil (Cacá Diegues, 1979). Desse ponto, foram feitas investidas a momentos anteriores, à década de 1950, por exemplo, com seus fortes sinais do processo da industrialização automobilística nacional, refletida em filmes tão diversos quanto Sai da frente (Abílio Pereira de Almeida, 1952), A estrada (Osvaldo Sampaio, 1955) e Pé na tábua (Victor Lima, 1957), e momentos posteriores, com produções tão marcantes como os filmes de Walter Salles – Terra estrangeira (em codireção com Daniela Thomas, 1995), Central do Brasil (1998), Diários de motocicleta (coprodução internacional, 2004) e Na estrada (2012) –, além de vários outros diretores e suas realizações (cf. filmografia e bibliografia deste site). As linhas que vêm a seguir resultam, portanto, de comparações entre vários diretores e suas obras, as quais põem em questão filmes de estrada do Brasil no que diz respeito às suas especificidades, mas sem perder de vista a dimensão intercultural que relaciona o país ao mundo, ou seja, às tantas experiências cinematográficas possíveis de ser compreendidas na chave dos road movies. As linhas aqui percebidas são, em suma: cinema físico; crise da cultura patriarcal; cultura popular e intermidialidade; dialética do trabalho e da malandragem; interação entre ficção e documentário; paisagens afetivas; “sertão-mar” e “viagens do (re)descobrimento nacional”. Não são linhas excludentes entre si, muito pelo contrário, frequentemente se interseccionam umas às outras. A apresentação de cada delas separadamente tem, de fato, a intenção de funcionar como um parâmetro objetivo, um esquema didático, capaz de levar à compreensão de uma provável história e de uma possível teoria acerca dos filmes de estrada no Brasil.