Interações entre Ficção e Documentário

Esta linha foi inicialmente deduzida do filme Iracema, uma transa amazônica. Filmado em 1973-4, o filme, codirigido por Jorge Bodanzky e Orlando Senna, é uma coprodução entre Brasil, Alemanha e França e, como bem observa João Luiz Vieira (2013, p. 202), trata-se de uma realização que evidencia o interesse desses diretores por um cinema híbrido entre ficção e documentário, por exemplo, ao incluírem entrevistas em lugar de diálogos e ao filmarem com uma inspiração neorealista em locações onde atores profissionais atuam com atores semiprofissionais ou mesmo não atores, na chave de uma crítica social, que acabou inclusive resultando em uma censura ao filme pelo regime militar, a qual perdurou até 1980. De fato, a atuação de Paulo César Pereio, no papel de Tião Brasil Grande, contracenando com inexperientes atores ou mesmo não atores, inclusive, Edna de Cássia, no papel de Iracema, constitui uma das estratégias fundamentais do filme, que propõe uma encenação orientada pelo efeito de distanciamento de Brecht, explorando esteticamente o poder de Tião-Pereio sobre Iracema-Edna de Cássia e sobre os demais integrantes do elenco. Como reconhece Ismail Xavier (1990, p. 368), o método de Bodanzky e Senna está relacionado a uma tradição do “feito estranho” próprio do cinema verdade, no caso aqui obtido com a intervenção de um ator teatral (Pereio) em meio ao mundo e às pessoas “reais” enquadradas pela câmera. Há, contudo, outras experiências em que a interação entre ficção e documentário está dada, fazendo-nos cogitar uma linha recorrente que perpassa distintos momentos do cinema brasileiro (cf. PAIVA & SOUZA, 2014). Como exemplo, é oportuno lembrar de Viajo porque preciso, volto porque te amo  (Karim Aïnouz, Marcelo Gomes, 2009), um projeto que teve início em 1997 quando Aïnouz e Gomes concorreram a um edital para a realização de pesquisa e roteiro tendo em vista a realização de um documentário que se intitulava então Carranca de acrílico azul piscina. Do fragmentado roteiro surgiu o curta documentário Sertão de acrílico azul piscina (Karim Aïnouz, Marcelo Gomes, 2004), que por sua vez foi o ponto de partida para a “ficção” Viajo porque preciso, volto porque te amo. Muitos outros filmes ainda poderiam ser considerados a propósito da interação entre ficção e documentário sob diversos aspectos – A estrada (Osvaldo Sampaio, 1955); a trilogia de Roberto Farias com Roberto Carlos; A estrada da vida, Milionário e José Rico (Nelson Pereira dos Santos, 1980); Aopção ou as rosas da estrada (Ozualdo Candeias, 1980); Diários de motocicleta (Walter Salles, 2004); 33 (Kiko Goifman, 2002); Cinema, aspirinas e urubus (Marcelo Gomes, 2005), etc. Observados em conjunto, esses filmes instigam uma reflexão com premissas relacionadas ora ao “risco do real” (Comolli, 2008), ora às “instruções de leitura documentarizantes” (Roger Odin, 2002), ora aos “documentários de busca” (Bernardet, 2005), ora a todas essas possibilidades conjuntamente. Em síntese, o risco do real pressupõe roteiros abertos, que se deixam impregnar pelo acaso do mundo, sem uma concepção determinada a priori daquilo que será registrado enquanto imagem e som:  Comolli parece interessado por filmes que fogem à lógica do mercado e que se expõem ao risco com o real procurando uma realidade da inscrição fílmica que seja capaz de instaurar a dialética da dúvida e da crença no espectador, como uma parte da arte que é capaz de revelar a estranheza do mundo. Por sua vez, para Roger Odin as instruções de leitura documentarizantes pressupõem escalonamentos nos níveis de leitura possíveis de um determinado filme, que poderá suscitar no espectador uma maior disposição para uma leitura fictivizante ou documentarizante, inclusive, em função de suas estruturas estilísticas. Já Bernardet percebe o risco que envolve alguns realizadores na busca daquilo que por fim vai constituir a narrativa e o discurso de seus próprios filmes. Tal concepção, que ele associa a “documentários de busca”, na verdade, coincide em parte com as proposições de um dos pesquisadores pioneiros no âmbito dos road movies, Timothy Corrigan (1991, p. 144), que reconhece o “motivo da busca” como uma das principais características dos filmes de estrada.

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